Resumo: O superendividamento é um
fenômeno mundial de repercussões jurídica, social e econômica. Para uma melhor
compreensão e escolha do tratamento adequado, entretanto, é necessário
reconhecer sua gênese e propagação à luz de fatores locais. O presente trabalho
destacará tais fatores, examinados sob a perspectiva da microeconomia, na
teoria da demanda, concentrando-se em analisar os desdobramentos resultantes
das conclusões encerradas nas pesquisas da teoria do consumidor. Para tanto buscará, numa breve abordagem histórica,
apontar as causas genéricas originárias do consumo, o conceito de
desenvolvimento e o surgimento do consumismo. Os vieses a serem mais
detidamente abordados referem-se àqueles intrinsecamente relacionados à decisão
de compra pelo consumidor; aos opostos influenciáveis forjados no mercado de
fornecedores e seu papel na evolução do superendividamento.
Palavras-chaves: Desenvolvimento. Fatores
Microeconômicos. Superendividamento. Consumo.
1 Introdução
Produção
e consumo são as forças que representam os pilares da Economia de Mercado. São
estudadas pela ciência econômica em busca do equilíbrio entre a escassez de
recursos utilizáveis na produção de bens e serviços e a prodigalidade das
necessidades humanas para o consumo. Entre os fatores econômicos que as sopesam
– analisados como problemática fundamental na teoria econômica – estão o
crescimento econômico, a renda nacional, o desemprego e o déficit público,
agrupados em temas distintos, em respeito à área de estudo a que pertencem. A
Microeconomia, ou Teoria dos Preços, é uma dessas áreas, e está especificamente
voltada para o exame dos elementos formadores dos preços que melhor alcancem a
plena satisfação dos consumidores e dos fornecedores, representada, lacônica e
respectivamente, pela utilidade do produto, e pela geração de lucro. Assim, o
estudo da procura e da oferta, entre outros, está sob sua tutela.
Concentrando-se no destinatário final do produto ou serviço, desdobramentos
como preferência, utilidade e restrições orçamentárias pertencem a esta
interessante área de estudos e representam os elementos primordiais que
influenciam o consumidor na decisão pela compra.
O
presente artigo busca, primeiramente, fazer uma breve abordagem sobre a
evolução do consumo humano, desde seus primeiros registros históricos, até o
surgimento da sociedade de consumo, resultante do reflexo, na economia de
mercado, do conceito de desenvolvimento predominante no Sistema Liberal.
Posteriormente, analisará como a escolha e aprimoramento dos fatores
microeconômicos, nesse Sistema, contribuíram para o surgimento do
superendividamento, fornecendo base teórica a auxiliar os interessados na
profusão do consumo em engendrar estratégias de interferência na apreciação
racional do consumidor quanto aos fatores decisivos no momento da deliberação
pela compra (preferencias, restrições orçamentárias e utilidade). Sem, entretanto, atribuir a ocorrência do
endividamento descontrolado unicamente a fatores externos ao próprio
consumidor. Posteriormente fará uma breve incursão acerca dos efeitos sociais
do superendividamento, suas consequências na vida privada do indivíduo e seu
alcance na comunidade.
Finalmente,
o artigo trará como conclusão o entendimento de que diante da diversidade de
aspectos, de ordem interna e externa, envolvidos na geração e manutenção do
superendividamento, o tratamento necessário para sua solução – seja preventivo
ou resolutivo – deverá necessariamente prever avaliação multidisciplinar com
envolvimento e parceria entre entidades púbicas e privadas.
2 Desenvolvimento e consumo exagerado
– uma conexão perversa
O
ato de consumir, no que se refere à atividade de fruir de algo material (bem)
ou imaterial (serviço), com total ou parcial destruição, é uma das necessidades
humanas básicas e, a um só tempo, pressuposto e resultado permanentes da
continuidade da espécie. No dizer de Zygmunt Bauman (2008, p. 37) trata-se de
“uma condição e um aspecto irremovível, sem limites temporais ou históricos; um
elemento inseparável da sobrevivência biológica que nós humanos compartilhamos
com todos os outros organismos vivos”. Há, por outro lado, o consumo
institucionalizado, aquele que se refere à fase final do processo de produção,
precedido por etapas de fabricação e comercialização, que, no dizer de Cristina
Petersen Cypriano (2008, p. 10), “se divide entre uma atividade de suprimento e
outra de dispêndio, numa referência tanto àquilo que nutre e alimenta quanto
àquilo que exaure e destrói”.
Sob
uma perspectiva econômica e conforme o paradigma liberal, este último conceito
refere-se a um dos fatores determinantes para o desenvolvimento da humanidade,
o consumo crescente e a produção de excedente. Suas origens sociológicas
emergem da antiguidade, tendo surgido contemporaneamente ao processo
civilizatório, dele sendo parte integrante. Com efeito, os padrões da vida
civilizada baseados na produção de excedentes e estocagem foram moldados ainda
nos primórdios da humanidade, na chamada Revolução
Neolítica (BAUMAN, 2008), quando o ser humano substituiu o modo de vida
nômade, rústico e precário das primeiras civilizações – cujas necessidades eram
supridas pela coleta – por um estilo que promovia atividades direta ou
indiretamente relacionadas à produção e ao consumo.
Evoluindo
gradativamente, esse modelo estabelecido trouxe, em dado momento da história
recente, drásticas alterações às relações de mercado, fazendo surgir a chamada sociedade de consumo, definida como
composição mercantilista caracterizada pela existência de relações de compra e
venda massificadas onde a oferta excede a procura. No dizer de Grant Mccracken
(2003), “o aparecimento da revolução do
consumo rivaliza apenas com a revolução neolítica no que toca à
profundidade com que ambas mudaram a sociedade”. De fato, se nota que tanto no
sistema de concorrência pura da economia de mercado, que predominou até final
do Século XIX, quanto, posteriormente, no sistema de concorrência mista, a
produção e o consumo vêm, indistintamente, se revelando o motor propulsor das
economias, interferindo na graduação do nível de evolução de um país e até no
conceito político de desenvolvimento.
Com
efeito, ao longo de Século XX, com ênfase no pós-Segunda Grande Guerra, teorias
clássicas e neoclássicas desenvolvimentistas, amplamente difundidas nas
economias de mercado norte americana e europeias, debateram-se com teorias
modernas, de inspiração keynesiana, num esforço para delimitar o conceito de
desenvolvimento. Conforme as primeiras, a ideia desse termo está restrita a
elementos meramente monetários, representados pelo cálculo do poderio econômico
de um determinado lugar, em determinada época. Esse cálculo se traduz na soma
dos valores do chamado Produto Interno Bruto – PIB – que em sua fórmula considera elementos da
produção interna de bens e serviços relativos a grupos específicos da atividade
econômica, conforme explicitado por F. B. Meneguin e F. S. Vera (2012, p.
85-88).
O
Produto Interno Bruto (PIB) é o principal indicador da riqueza de um país,
representando a soma dos bens e serviços produzidos por uma nação.
Essa
medida leva em conta três grupos principais de atividades: Indústria, que
engloba Extrativismo Mineral, Transformação, Serviços Industriais de Utilidade
Pública e Construção Civil; Serviços, que incluem Comércio, Transporte,
Comunicação, Serviços da Administração Pública e outros serviços.
A
importância do PIB consiste no fato de que existem padrões internacionais sobre
a forma pela qual ele deve ser computado, permitindo comparações entre os
países.
Observe-se
que essa modalidade de aferição surgiu em razão do interesse premente das
nações em medir e comparar suas riquezas. Embora eficaz para calcular a abundância de dinheiro e propriedades de um país, o PIB é
inviável para avaliar a qualidade de vida de seu povo, conforme pondera o
idealizador, Simon Kuznets, em prelação no Congresso dos Estados Unidos em
1932, quando declara: “o bem-estar de um país dificilmente pode ser inferido de
uma medição da renda nacional” (HENDERSON, 2007).
As
teorias modernas, cientes da precariedade na conceituação de desenvolvimento do
modelo liberal, defendem a ampliação da sua abrangência para incluir fatores
sociais, levando em conta as três dimensões básicas das necessidades humanas:
renda, educação e saúde. Assim, nesses termos, o país desenvolvido é aquele que
apresenta um valor razoável do PIB, que garanta uma boa qualidade de vida ao
seu povo, traduzida numa vida longa e confortável, no acesso ao conhecimento e
num bom padrão de bem estar mental, físico e psicológico. Para tal aferição o
PIB deve ser substituído por outro índice mais abrangente e igualmente
comparável entre países. Neste norte, em 1990, o Programa das Nações Unidas
para o Desenvolvimento – PNUD, a partir do trabalho realizado por Mahbub ul Haq
e Amartya Sen, criou o Índice de Desenvolvimento Humano – IDH, que logo foi
assimilado pelas atuais correntes desenvolvimentistas. Sobre o tema asseveram
F. B. Meneguin e F. S. Vera (2012, p. 85-88),
Apesar
de sua importância como medida da atividade econômica, há que se enfatizar que
o PIB não pode ser tomado como forma de se aferir bem-estar.
Dessa
maneira, estudiosos do mundo todo vêm discutindo intensamente a substituição do
PIB por um novo indicador que contemple o desenvolvimento sustentável e, a par
das variáveis econômicas, incorpore também as sociais e as ambientais.
O
que mais se aproxima disso em escala global é o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH). Trata-se de índice que serve para comparação entre os países, com
o objetivo de medir o grau de desenvolvimento econômico e a qualidade de vida
oferecida à população.
Pondere-se
que os idealizadores do IDH também não o têm por definitivo para medir todos os
elementos componentes do pleno desenvolvimento de um país, entendendo-o como
útil sobretudo a promover a discussão sobre o tema, conforme informativo do
PNUD (2013).
Apesar
de ampliar a perspectiva sobre o desenvolvimento humano, o IDH não abrange
todos os aspectos de desenvolvimento e não é uma representação da
"felicidade" das pessoas, nem indica "o melhor lugar no mundo
para se viver". Democracia, participação, equidade, sustentabilidade são
outros dos muitos aspectos do desenvolvimento humano que não são contemplados
no IDH. O IDH tem o grande mérito de sintetizar a compreensão do tema e ampliar
e fomentar o debate.
Insuficiente
para medir o desenvolvimento de um lugar, considerando sobretudo a dignidade da
vida humana, o IDH é, entretanto, eficaz em promover o exame do tema e, por
isso, foi legitimado internacionalmente no lançamento do Relatório Anual do
PNUD, de 1990, sendo este o primeiro documento oficial a mencioná-lo. Sua
consagração veio na Conferência das Nações Unidas, em 1992, conhecida como
Rio’92, quando restou definitivamente associado ao desenvolvimento sustentável.
Atualmente possui indicadores complementares, como o Índice de Desenvolvimento
Humano Ajustado à Desigualdade – IDHAD, o Índice de Desigualdade de Gênero –
IDG, e o Índice de Pobreza Multidimensional – IPM.
Embora
ganhem força, as teorias modernas ainda não prevalecem. Atualmente o PIB
permanece como principal índice observado na classificação de desenvolvimento
dos países e imbuído de significativo prestígio. Apesar de compartir influência
com o IDH, ele é o mais utilizado na macroeconomia para medir o desenvolvimento
de uma nação. Sua fórmula simples é rapidamente absorvida pelos Governos em
geral e determinante das políticas internas, tornando-se uma tarefa prevalente
prosperar seus resultados. Neste propósito, o sistema econômico que o adota
como indicativo, exige do mercado produção e consumo progressivos, ignorando os
limites da razoabilidade para a geração de lucro diante da escassez de matéria
prima.
Esse
paradigma cria distorções tanto no âmbito externo, nas relações entre nações
(por exemplo, promovendo exploração de riquezas naturais dos países centrais
face aos periféricos); como internamente, desequilibrando forças entre as
instituições (nas relações do mercado de crédito, por exemplo). Efetivamente,
quando os resultados da produção passam a ser os únicos representativos do grau
de desenvolvimento de uma nação que, com elevados índices de crescimento
econômico ganha prestígio no cenário internacional, produzir passa a ser a
principal meta em detrimento das necessidades socioambientais do povo. Neste
diapasão, produção prodigiosa requer demanda equivalente, sob pena de recessão.
A consequência natural desse enredo é o consumo exagerado.
Destarte,
esse procedimento é observado em praticamente todas as nações ocidentais,
gerando um ritmo eufórico de compra e venda que traz consigo problemas
manifestos no âmbito social com nefastas consequências, como o
superendividamento. Igualmente, nota-se que em razão do perene desequilíbrio
existente entre a quantidade de recursos utilizáveis na produção de bens/serviços
e a profusão das necessidades humanas para deles fruir, conceitos como meio
ambiente, cidadania e sustentabilidade tornam-se incompatíveis e obviamente,
desprezados pelas políticas públicas. Com efeito, eis que se pode afirmar que o
consumo exagerado é fruto de um conceito perverso e ultrapassado de
desenvolvimento.
3 Consumismo e superendividamento
A cultura do consumo
exagerado vem sendo efetivamente estimulada em nossa sociedade a partir dos
anos de 1920, com a expansão do fordismo nos Estados Unidos da América.
Tratava-se de um método de racionalização da produção, criado por Henry Ford,
que, associado aos ensinamos de administração científica propostos por
Frederick Taylor, visa promover alta produtividade e demanda, tornando-as
equivalentes. Sua gênese remonta à Revolução Industrial, iniciada no século
XVIII na Inglaterra, a partir da qual tornou-se possível a fabricação de
produtos mais baratos, menos duráveis e mais acessíveis. Até então os produtos
eram avaliados por sua durabilidade e eficiência, assim, a regra era: quanto
mais duráveis e eficientes, mais valorizados pelo consumidor. Neste diapasão,
os fabricantes da época orientavam seus engenheiros e desenhistas a
considerarem, em seus projetos, o desempenho e conservação para que o produto
permanecesse inalterado durante muitos anos, tornando dispensável sua reposição
em curto prazo. Era corrente a ideia da baixa rotatividade de produtos e,
portanto, baixo consumo.
Essa estratégia passou a
ser vista como contraintuitiva pela economia de mercado, uma vez que a
desnecessidade da compra limitava a venda e, consequentemente, os lucros.
Aliados a esta percepção, os efeitos da Grande Depressão de 1929, se estendendo
durante toda a década de 1930, agravados pela deflagração da Segunda Guerra
Mundial, contribuíram decisivamente para a mudança no pensamento parcimonioso
predominante à época. Assim, sob o pressuposto de incentivo ao crescimento
econômico, e imbuídos das lições fordistas, os fabricantes americanos passaram
a diminuir a vida útil dos produtos para aumentar as vendas, gerando
considerável evolução nos seus lucros. Essa estratégia foi posteriormente
batizada de obsolescência programada.
Nos anos de 1950, no auge
do fordismo, incitar o consumo deixou de ser apenas estratégia para geração de
lucro e assumiu uma perspectiva ideológica nos EUA, onde a classe média branca,
estimulada pelo Governo Eisenhower, e incitada pelo crescente design industrial e marketing publicitário, passou a consumir
produtos mais modernos, bonitos e com tecnologia evoluída, consolidando o
consumo pela satisfação do desejo de possuir e não mais em razão da utilidade
do produto. No dizer de Peter Burke (2008, p. 34), o consumo estava,
[...]
entre os anos 1940 e 1970, relacionando-se à ascensão do efêmero. Diminuição da
quantidade de objetos antigos e ascensão da “cultura descartável”. Substituição
das lojas de departamentos pelos shopping centers, com uma grande quantidade de
cafés, restaurantes e cinemas, bem como vitrines. O consumo foi cada vez mais
sendo considerado uma forma de divertimento, uma forma de lazer e até mesmo de
uma atividade estética [...]
O aumento das vendas
elevou o lucro das empresas e o poder aquisitivo da população, proporcionando
maior capacidade de produção e de compra, elementos que se realimentavam num
moto-contínuo. Fatores econômicos e sociais, tais como o avanço da tecnologia;
a utilização do petróleo como principal matéria energética; a modernização da
agricultura e o aumento da população economicamente ativa, convergiram neste
projeto consumista. A sociedade poupadora de outrora se deixou seduzir pela
satisfação imediata e pueril do consumo exagerado. No Brasil, nesta mesma época
as políticas internas também favoreciam o surgimento de uma forma mais
expressiva do consumo, embora restrito às classes sociais mais elevadas, no
dizer de Renata M. S. Lira (2001),
No
Brasil, o modo de vida norte-americano, que tem o consumo e o consumismo como
um de seus fundamentos, foi introduzido paulatinamente no pós-guerra, com maior
sucesso a partir do final da década de 1950, durante o governo de Juscelino
Kubistchek. Este governo caracterizou-se pela abertura ao capital internacional
e por uma política externa de incentivo às importações. Neste período, as
classes médias passaram a ter acesso mais fácil a alguns produtos de grande
destaque nos Estados Unidos, como eletrodomésticos, que, em parte, passaram a
ser produzidos no Brasil.
Entre os anos de 1960 e 1980, o consumo em massa no
Brasil fora inexpressivo. A mal sucedida política econômica promovida pelos
Governos Militares e as desastrosas tentativas de estabilização executadas
pelos primeiros Governos da Nova República, ora privilegiando elites sociais e
inviabilizando a compra massiva pelas classes mais baixas, ora derrocando a
todos, indistintamente, com a corrosão do dinheiro pela hiperinflação,
inibiram, durante mais de 20 anos, o aumento do consumo. O consumidor,
empobrecido e sem renda extra, percebia inviabilizado seu poder de compra.
Somente após o implemento do Plano Real, em 1994, o
consumo popular mostrou seu maior desempenho em terras nacionais. O controle da
inflação alcançado pela estabilização econômica, associado às políticas de
inclusão social e mais emprego, geraram aumento real do poder aquisitivo das
famílias mais carentes, facilitando-lhes a emersão das classes E e D para a
classe C, conforme estudo divulgado pela Fundação Getúlio Vargas – FGV (2010),
abrindo assim as comportas do consumo no Brasil, que logo se converteu em
exagerado:
Cerca de 29
milhões [de brasileiros] ingressaram nas fileiras da chamada nova classe média
(Classe C) entre 2003 e 2009, sendo 3.2 milhões entre as duas últimas PNADs. Na
época de crise a classe C cresceu mais em termos proporcionais (2,5%) do que as
demais classes, chegando em 2009 a 94,9 milhões de brasileiros, o que
corresponde a mais da metade da população (cerca de 50,5% da população).
Consolidado no Brasil com feições ideológicas, a
exemplo dos EUA, o consumo paulatinamente foi alçado a regra social promovedora
de status e satisfação pessoais
capazes de definir o papel do indivíduo na sociedade. Neste sentido, analisa
Inês Hennigen (2010):
Importante
ressaltar que a argumentação de Baudrillard (1970/2005) no sentido de que os
objetos têm um valor de signo, que sua posse confere status, foi seminal para enrobustecer as análises que articulam
consumo e posição social dos sujeitos. Isso porque, desde então, cada vez mais
as mercadorias passaram a ser concebidas não apenas como objetos que viabilizam
a satisfação de necessidades e desejos, mas como “senhas” que possibilitam
identidade, pertencimento e reconhecimento social. Em função disso, o consumo
começou a ser considerado uma espécie de motor e matriz das relações sociais.
Conforme essa abordagem, os produtos e serviços a que
o indivíduo tem acesso passaram a definir seu nicho social no qual o consumo
sucessivo lhe garante a permanência. Em síntese, não basta comprar, deve-se
permanecer comprando contínua e precocemente porque transitório é o efeito
inclusivo da compra. Com efeito, no Brasil e no mundo, o consumo passou a se
fazer presente em todas as atividades humanas, tornando-se um fim em si mesmo.
Isso se deu em razão da convergência de interesses dos produtores industriais e
do mercado de crédito, patrocinados pelo estabelecimento definitivo da cultura
consumista e da hipervalorização do possuir. Eis que a compra encerra em si seus
propósitos, e a abundância de produtos no mercado tem sua demanda garantida
pelo crédito fácil disponibilizado pelas instituições financeiras.
Assim, oferta, crédito e demanda, triangularam uma
base perfeita para a expansão do consumo, formando uma ordenação de elementos
favoráveis ao surgimento do conceito de sociedade de consumo na qual,
atualmente, todas as pessoas estão inexoravelmente incluídas. Suas
características abrangem elevada produção, consumo massivo e alto
desenvolvimento industrial, contexto no qual surge o consumismo, distorção da compra definido por Zygmunt Bauman (2008,
p. 41) como
um tipo de arranjo social resultante da reciclagem de
vontades, desejos e anseios humanos rotineiros, permanentes e, por assim dizer,
‘neutros quanto ao regime’, transformando-se na principal força propulsora e
operativa da sociedade, uma força que coordena a reprodução sistêmica, a
integração e a estratificação sociais, além da formação de indivíduos humanos,
desempenhando ao mesmo tempo um papel importante nos processos de
auto-identificação (sic) individual e de grupo, assim como na seleção e
execução políticas de vida individuais.
Para manter altos padrões de consumo que dê vazão à
oferta abundante de produtos e serviços, há que haver dinheiro extra, este vem
sendo fornecido mediante crédito farto cuja concessão desconsidera mínimo
critério avaliativo quanto às condições econômico-financeiras do tomador.
Previsível que tal circunstância culmine em consequências por vezes nocivas ao
consumidor, gerando impacto social cada vez mais expressivo, crônico e
abrangente, entre eles o superendividamento.
Esse fenômeno carece de conceito legal, sendo definido
pela doutrina de Cláudia Lima Marques (2005, p. 256) como “a impossibilidade do
devedor, pessoa física, leiga e de boa fé, em pagar suas dívidas de consumo”.
Tal problema representa um agente de destruição lenta e silenciosa, que arruína
não somente sua vítima direta, mas àqueles que dela dependem financeiramente.
Trata-se de condição que impõe extrema escassez, em oposição à fartura de bens
ou serviços que a produziu, e afasta o devedor e sua família da
vida social, sendo essa já totalmente incutida de atividades realizadas
habitualmente em torno do lazer pela compra.
O superendividamento se
destaca pelo alcance – observado em diversos países, centrais ou não – e pela
extensão de seus males, repercutindo não apenas no próprio inadimplente, mas na
família, na comunidade e até na economia local, considerando que o endividado
perde a capacidade de aquisição de crédito e se torna um pária no mercado de
consumo. Sob a ótica dos produtores, trata-se de um consumidor a menos.
Observe-se que as causas
desse problema não residem unicamente em aspectos individuais do comprador,
supostamente livre para fazer suas escolhas ou deixar-se seduzir pela
propaganda, na qualidade de destinatário final do bem ou serviço. Causas
externas, como políticas públicas promotoras de incentivo à compra sem,
entretanto, apresentar a devida instrução para um consumo consciente,
contribuem para este fim.
Com efeito, a
Microeconomia, por meios dos estudos realizados pela Teoria do Consumidor –
encarregou-se de definir quais os principais fatores envolvidos na decisão de
comprar, analisando o universo de elementos concorrentes para sua efetiva
realização, e distinguindo as preferências, a utilidade do produto e as
restrições orçamentárias como seus principais fatores. Estas conclusões são
utilizadas pelos fornecedores na elaboração de mecanismos de persuasão, sendo,
portanto, de relevância para a compreensão do superendividamento.
4 Fatores microeconômicos e
superendividamento
A microeconomia ramifica
a ciência econômica para analisar a teoria dos preços e explicar o modo como
consumidor e produtor decidem, a partir da interação entre si, preço e
produtos/serviços a serem disponibilizados em determinado mercado, em razão da
satisfação e lucro máximos que possam lhes trazer, respectivamente. A
Microeconomia está, pois, voltada para as unidades individualizáveis da
economia – consumidores e empresas – e para a universalidade de fatores que
influenciam as relações entre elas. Seus subitens abrigam a Teoria da Demanda
que “divide-se em Teoria do Consumidor (demanda individual) e Teoria da Demanda
de Mercado”, conforme Marco Antônio S. Vasconcelos e Manuel E. Garcia (2009, p.
42).
Por razões didáticas, e
por estarem mais intrinsecamente relacionadas às causas do surgimento e
manutenção do superendividamento, o presente trabalho se interessará apenas
pelos estudos realizados pela Teoria do Consumidor, e nesta, no tocante ao item
das razões de compra do consumidor,
conforme feito a seguir.
4.1 Demanda e
Teoria do Consumidor
A demanda é definida por
Margarida Anjos e Maria Ferreira (2008, p. 291) como a “quantidade de
mercadoria ou serviço que um consumidor ou conjunto de consumidores deseja e
está disposto a comprar a um determinado preço”. Embora singela, essa definição
é hábil a apresentar os principais elementos da demanda nos precisos moldes
como é tratada pela Economia: desejo ou pretensão, poder aquisitivo e oferta.
Na análise da demanda releva descrever o comportamento preponderante do
consumidor na aquisição de determinados produtos ou serviços, ou, no dizer de
Marco Antônio S. Vasconcelos e Manuel Enriquez Garcia (2009, p. 48), “as variáveis
que influenciam a escolha no momento da compra”, que são:
O
preço do bem ou serviço, o preço dos outros bens, a renda do consumidor e o
gosto ou preferência do indivíduo. [...]
Os economistas supõem que a curva
ou a escala de procura revela as preferências dos consumidores, sob a hipótese
de que estão maximizando sua utilidade ou grau de satisfação no consumo daquele
produto. Ou seja, subjacente à curva há toda uma teoria de valor que envolve,
como vimos, os fundamentos psicológicos do consumidor.
A Teoria do Consumidor
estuda, pois, as razões subjetivas da compra que estão estritamente ligadas ao
conceito pessoal de serventia do produto. Conforme os citados autores
(VASCONCELOS; GARCIA, 2009, p. 45), “a evolução do estudo da teoria microeconômica
teve início basicamente com a análise da demanda de bens e serviços, cujos
fundamentos estão alicerçados no conceito subjetivo de utilidade.”
Considerada relativamente
abstrata em razão do alvo da sua pesquisa (preferências e fatores
psicológicos), essa teoria busca descrever o que leva o indivíduo a decidir
pela compra de determinado produto ou serviço e como ele dirime suas dúvidas de
escolha, geralmente relacionadas a restrições orçamentárias e gosto. Pois bem,
segundo suas patentes conclusões, a escolha de produtos ou serviços é feita
face à utilidade que se possa atribuir-lhes, sendo mais proveitosos aqueles que
proporcionam maior satisfação. A serventia, a despeito das faculdades práticas
que se possam atribuir aos bens e serviços, é item passível de interpretações,
podendo variar entre os indivíduos e conforme o fim a que lhes pretenda dar.
Sobre este aspecto, Marco Antônio S. Vasconcelos e Manuel Enriquez Garcia
(2009, p. 45) asseveram:
A utilidade representa o grau de satisfação que os
consumidores atribuem aos bens e serviços que podem adquirir no mercado. Ou
seja, a utilidade é a qualidade que os bens econômicos possuem de satisfazer as
necessidades humanas.
Como está baseada em aspectos psicológicos ou
preferências, a utilidade difere de consumidor para consumidor (uns preferem
uísque, outros, cerveja).
Com efeito, a variação do
conceito de utilidade entre os indivíduos se deve a um elemento pessoal: a
preferência. Manifestada na habilidade do comprador em decidir nas situações de
dúvida, esse elemento representa um dos mais importantes na realização da
compra, conforme Fabiana Silva Paiva (2011, p. 95):
As relações de preferência representam um papel
crucial na teoria da escolha, pois sintetiza os desejos do tomador de decisão.
As preferências são caracterizadas de forma axiomática e formalizam a ideia de
que decisores podem escolher e que essas escolhas são consistentes.
De fato, se pode afirmar que os motivadores da compra
estão intrinsecamente ligados às necessidades (utilidade do produto) e desejos
(preferência) do consumidor. Já a
decisão de comprar sofre estímulos internos e externos cujo influxo varia
conforme características individuais. Essas deduções foram concluídas pelos
estudiosos da Teoria do Consumidor e são utilizadas pelos fornecedores de bens
ou serviços na elaboração de estratégias de venda, por esta razão, sua
relevância no surgimento e manutenção do superendividamento.
Alguns dos principais mecanismos utilizados pelos
fornecedores na geração da demanda, a partir das conclusões da referida teoria,
são descritos por Marco Antônio S. Vasconcelos e Manuel Enriquez Garcia (2009,
p. 45) como “disponibilização de crédito, oferta de produtos diversificados e
de curta duração e estratégias de marketing”. A abordagem eleita pelo presente
trabalho buscará delimitar esses mecanismos e seu papel na geração do
superendividamento, no contexto da sociedade brasileira a partir da expansão do
consumo.
4.1.1 Amplo acesso
ao crédito
No mercado de consumo a
escolha do produto ou serviço é dada em razão do nível de utilidade que, para o
consumidor, ele atingiu, e pela sua preferência. Entretanto, a opção pela
compra leva em conta suas restrições financeiras. Logo, para resolver a falta
ou insuficiência de renda imediata, o mercado gera oferta de dinheiro capaz de
garantir poder aquisitivo suficiente, ainda que virtual. A busca por crediário
torna-se, pois, diretamente proporcional à busca por produtos e serviços. Esse
mecanismo gerador da demanda começou a ser praticado no Brasil, mais intensamente,
a partir da década de 1990. O controle inflacionário promovido pelo incremento
do Plano Real (1994) e a estabilidade econômica dele decorrente forçaram os
bancos – acostumados a lucrar com a inflação – a buscar alternativas para
compensar suas perdas, conforme José R. Mendonça de Barros e Mansueto F.
Almeida Jr. (1997, p. 93) avaliam.
Uma
das formas encontradas pelo sistema bancário para compensar a perda da receita
inflacionária, antes de fechar agências e efetuar os ajustes que se faziam necessários
no modelo operacional, foi expandir as operações de crédito, lastreadas pelo
crescimento abrupto dos depósitos bancários trazidos com o Plano Real. Os
depósitos à vista, por exemplo, mostraram crescimento de 165,4% nos seis
primeiros meses do Plano Real, e os depósitos à prazo crescimento de quase 40%
para o mesmo período.
Ávidos por vender seus
produtos, os bancos negligenciaram uma necessária e prévia cautela no
fornecimento, concedendo crédito com sacrifício na qualidade da oferta. Neste
sentido ponderam referidos autores (idem,
p. 95):
O
grande problema em períodos de expansão rápida dos créditos é o aumento da
vulnerabilidade das instituições financeiras. (...) são momentos de expansão
macroeconômica, quando os devedores estão transitoriamente com folga de
liquidez, dificultando, assim, uma análise de risco mais rigorosa por parte dos
bancos.
Com efeito, nos primeiros
anos do Plano Real, o mercado de crédito se expandiu sistematicamente, com
ênfase para o crédito pessoal. A demanda por produtos e serviços cresceu
proporcionalmente, alcançando índices perigosos, fazendo com que o Governo, por
temor à uma eventual volta da inflação, adotasse medidas de contensão, elevando
as taxas de juros e os recolhimentos compulsórios, arrefecendo, assim o mercado
de créditos. Tais medidas, conforme calculado, resultaram em aumento no preço
do financiamento e queda na demanda em geral. Entretanto, como efeito
colateral, geraram expressiva inadimplência para tomadores de crédito. A este
revés somaram-se as instabilidades econômicas internas e externas ocorridas no
período, obrigando os bancos a tornarem-se mais seletivos na concessão de
crédito e a adotar regras ainda mais severas para sua liberação. O
endividamento mostrava-se em crescimento. Tais circunstâncias promoveram, até o
ano de 1999, certa perda de entusiasmo no mercado de crédito, levando-o a
relativa estabilidade. A partir de 2001, entretanto, novo ciclo iniciou-se com
elevação expressiva da demanda no setor de crédito à pessoa física, tendência que
se manteve até os dias atuais, com algumas oscilações, representando,
inclusive, fator de peso no PIB nacional, conforme dados da Federação
Brasileira de Bancos - FEBRABAN (2012):
A
última década tem sido a década do crédito no Brasil, com a oferta de crédito
crescendo mais rápido do que o nosso Produto Interno Bruto.
A
oferta total de empréstimos e financiamentos ao setor privado saltou de 26,4%
do PIB no ano 2000 para 49% no ano passado o crédito para PF, que representava
35% do total do crédito livre no ano 2000, fechou 2011 representando a metade
da oferta de crédito, com um saldo de R$ 651 bilhões.
Essa expansão do crédito
é resultado de campanhas mais incisivas na oferta deste serviço, promovidas
pelos bancos, embora com maior seletividade em relação ao tomador. A carteira
se diversificou e produtos de massa, com ou sem segmentação específica, como o
crédito direto ao consumidor e o empréstimo consignado, surgiram ou foram
regulamentados, tornando o mercado de crédito muito atrativo para seus atores.
Sobretudo a partir de 2003, as políticas voltadas para a inclusão social, a
exemplo da criação do Programa de Microcrédito, que permitiu abertura de conta
corrente mediante processo simplificado, com isenção de tarifas bancárias e
movimentação máxima limitada a mil reais, elevaram as microfinanças a um
patamar de prioridade, expandindo a oferta do crédito para as grandes massas. A
par disso, cooperativas surgiram para disponibilizar cartões de crédito à
população de baixa renda, logrando fomentar o consumo por meio do acesso a
serviços financeiros tradicionalmente inacessíveis às camadas mais pobres da
população.
Além de desburocratizar a
abertura de contas, o Governo promoveu forte expansão da rede bancária por meio
da criação de agências, correspondentes, postos bancários e Caixas Automáticos
– ATMs, em locais públicos, além de caixas eletrônicos que funcionam após o
expediente bancário. Estas novas opções de acesso contribuíram para a difusão
dos serviços bancários, alcançando o público em locais próximos à sua
residência e seu trabalho, como padarias, mercados e farmácias. Com isto, os níveis de acesso a serviços
financeiros e o grau de uso desses serviços tornaram-se bastante expressivos.
Notícia veiculada pelo
Portal Brasil (2011), resumindo análise, feita pela FEBRABAN, sobre dados de
pesquisa realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA, dão
conta dos números expressivos da atividade bancária na última década, com
destaque para a expansão da quantidade de correspondentes bancários e para o
aumento do número de contas bancárias e de cartões de crédito.
O
levantamento Bancos: Exclusão e Serviços, de acordo com a Febraban, indica que
44% das pessoas que têm conta bancária são clientes há, no máximo, cinco anos.
A
oferta de canais de relacionamento com o público também está crescendo, segundo
a Febraban. “O total de agências passou de 16,4 mil, em 2000, para 20 mil, em
2009. No mesmo período, o número de contas de internet banking registrou um
aumento de 322% (de 8,3 milhões para 35 milhões). E o total de correspondentes
aumentou de 54 mil para 223 mil, um avanço de 313%”.
De
acordo com a entidade, de 2000 a 2009 o número de contas bancárias no País
aumentou 110%, totalizando 133,6 milhões. No mesmo período, o número de cartões
de crédito cresceu 369%. O estudo mostra ainda que 39,5% dos brasileiros não
têm conta bancária.
Com efeito, o acesso a
empréstimos e financiamentos propiciou demanda maior nas classes C e D,
entretanto, a ausência de programas de políticas amplas de inclusão social, que
integre aspectos econômico-financeiros com vertentes educacionais, bem como
melhor controle normativo da oferta de crédito, sobretudo a esse público
carente, trouxe desajuste de suas finanças. Não basta dar aos pobres acesso à
universalidade de serviços disponibilizados pelo sistema financeiro
tradicional, há que disciplinar esse acesso, calçando-o com as ferramentas
necessárias para uma utilização consciente e garantia de desenvolvimento
global.
Ademais, se por um lado o
Governo patrocina a expansão do crédito a essa população carente, por outro
protege os interesses dos bancos, autorizando-os, por meio da polêmica Medida
Provisória nº 1.963-17/2000, reeditada sob o nº 2.170-36/2001, à capitalização
de juros remuneratórios em período inferior ao anual nas operações de crédito,
elevando, assim, sobremaneira, o valor dos empréstimos e financiamentos. Com
efeito, o spread bancário, definido
por Luiz Fernando de Paula, Guilherme Jonas C. da Silva e Fábio H. Ono (2006,
p. 624) como “a diferença entre a taxa de juros cobrada aos tomadores de
crédito e a taxa de juros paga aos depositantes pelos bancos”, no Brasil é um
dos maiores do mundo conforme dados apurados pelo Ministério da Fazenda em
2012: “spread bancário - Brasil:
28,5%; Portugal: 21,5%; Uruguai: 5,9%; México, Rússia, Austrália, China,
Canadá, Coreia do Sul e Japão: 3,7%, 3,6%, 3,2%, 3,1%, 3%, 1,8 e 1%
respectivamente” , noticiados no sítio
eletrônico G1 (2013).
Assim, a pouca
experiência no manejo do crédito, agora abundante e de alto custo, além do
desconhecimento do planejamento orçamentário por parte da maioria dos
consumidores, são fatores decisivos no crescimento do inadimplemento entre as
classes mais baixas e a nova classe média, ao ponto de revelar situações de
superendividamento.
4.1.2 Multiplicidade e baixa durabilidade de
produtos e serviços
A prática intencional dos
produtores em reduzir a durabilidade dos produtos ou serviços, limitando sua
sobrevida a determinado tempo ou número de vezes em que é utilizado, é um dos
artifícios usados para forçar a compra e está diretamente relacionado ao fator
utilidade que o consumidor atribui às suas eventuais aquisições. A chamada
obsolescência programada, inaugurada na primeira metade do século passado, é
uma prática consolidada na produção de bens e serviços. Sua intervenção se dá
no ciclo de fabricação do produto, interferindo na sua essência para alterá-lo
de modo a antecipar seu descarte e obrigar sua substituição.
Aliado a isso, os
fornecedores promovem um contínuo lançamento de produtos novos, com aparência
modificada, acessórios sobressalentes ou tecnologia minimamente avançada, que
não acrescentam nada à função original, mas desempenham um enorme fascínio no
consumidor. Esses produtos ‘repaginados’ são disponibilizados no mercado para
gerar a imediata desvalorização dos antecessores, que, mesmo em perfeito
funcionamento, são descartados e substituídos. Essa prática é reconhecidamente
abusiva e vem sendo alvo de fiscalização por parte de seguimentos do poder
público, fato pouco divulgado entre a população. Exemplo disso é que denúncias
de abuso levaram recentemente o Instituto Brasileiro de Política e Direito da
Informática – IBDI – a ajuizar ação para condenar uma empresa em danos morais
coletivos causados pelo uso da obsolescência programada, conforme notícia
veiculada no Jornal do Comércio (2013).
O
Instituto Brasileiro de Política e Direito da Informática (IBDI) acusa a
empresa norte-americana de prática comercial abusiva no lançamento do iPad 4 no
País. Se perder, a Apple pode ser obrigada a indenizar todos os consumidores
que adquiriram o tablet de terceira geração, substituído em menos de um ano.
O
instituto alega que o iPad 4 não trouxe evolução tecnológica efetiva frente ao
iPad 3 ou ‘Novo iPad’, caracterizando o que classifica de “obsolescência
programada”. Na prática, a acusação é que o iPad 3 da Apple poderia ter chegado
às prateleiras com as características apresentadas na quarta geração - um
processador, um conector e uma câmera um pouco mais avançados.
Essa estratégia
mercadológica iniciada no passado é absurdamente intensificada no presente,
representando recurso largamente utilizado para forjar uma demanda irracional.
Considerada grande responsável pelo superendividamento, conduz o consumidor à
compra precoce, quando o produto antecessor ainda se mostra eficaz e plenamente
utilizável. Com efeito, sem a devida reciclagem, essa troca compulsiva de bens
traz consequências perniciosas a todos, pois desequilibra a equação que busca
sopesar consumo e produção, provocando o exaurimento das reservas naturais do
planeta, a produção de enorme quantidade de lixo e, como já dito, no nível
individual, o excesso de dívidas.
De fato, o desgaste do produto pela ação do
tempo é previsível e aceitável, entretanto, o desgaste programado pelo
fabricante para impor a substituição antecipada é um desvio que põe em risco
não apenas a saúde financeira do consumidor, mas o meio ambiente considerado em
seu conjunto, uma vez que os recursos naturais utilizados na fabricação
desenfreada são finitos e insubstituíveis. Nessa altura, surge o inevitável
questionamento acerca das medidas que podem e devem ser tomadas, em nível
governamental, para deter tal prática.
4.1.3 Publicidade excessiva
Outro forte instrumento tático criado para aumentar a
expectativa de venda, e fiador do superendividamento, é a conhecida estratégia
de marketing. Utilizada para
determinar quais os produtos ou serviços que possam vir a interessar ao
consumidor e quais as formas de lhes gerar valor, ela é responsável pelas
espetaculosas táticas publicitárias. Relaciona-se com o fator preferência,
indicado pela Teoria do Consumidor como decisivo na hora da compra.
Estudos realizados por diversos seguimentos do saber
abordam o papel da publicidade no consumo e revelam a extrema importância que
lhe dão os produtores, investindo grandes quantias em projetos de pesquisa que
visam conhecer e distinguir os comportamentos indutores da compra para, por meio
da sedução publicitária, explorá-los. As conclusões extraídas destas pesquisas
dão lastro a estratégias discursivas, com conteúdo por vezes agressivo,
voltadas a incutir no comprador a necessidade (pelo desejo) do produto.
Neste estratagema, técnicas de forte impacto são
utilizadas para manipular a habilidade do consumidor em discernir sobre
utilidade e preferência no momento da compra. Neste desígnio os produtos
caseiros são denegridos e enaltecidos os industrializados; anúncios são
produzidos segundo bases da teoria psicanalítica da insatisfação que assevera
perpétua a carência humana, buscando materializar os alardeados desejos
infinitos e associá-los a produtos ou serviços; maculam-se os concorrentes, por
vezes de maneira desleal, e utilizam-se de imagens que choquem o consumidor,
tudo em nome da venda. Consumidores atraídos pela publicidade excessiva
muitas vezes sucumbem às estratégias de venda do tipo promoções relâmpago, descontos, brindes,
parcelamento da dívida, compre um e leve
dois, e alta diversidade dos produtos. No intuito de confundir
necessidade e desejo, as campanhas publicitárias buscam manipular o indivíduo
para induzi-lo à compra, conforme dizer de Philip Kotler (1995, p. 27):
Necessidade humana é um estado de privação
de alguma satisfação básica (...) [elas] existem na delicada textura biológica
e são inerentes à condição humana. Desejos são carências por satisfações
específicas para atender às necessidades (...) embora as necessidades das
pessoas sejam poucas, seus desejos são muitos. Os desejos humanos são
continuamente moldados e remodelados por forças e instituições sociais (...).
Demandas são desejos por produtos específicos, respaldados pela habilidade e
disposição de comprá-los. Desejos se tornam demandas quando apoiados por poder
de compra.
Com efeito, um conjunto de anúncios planejados e
expostos de forma agressiva surte efeitos imediatos, forçando modismos, criando
tendências, padronizando o comportamento do consumidor e até suprindo carências
afetivas. Conforme E. P. G. Rocha (1995, p. 27).
Vendem-se estilos de vida,
sensações, emoções, visões de mundo, relações humanas, sistemas de
classificação, hierarquia em quantidades significativamente maiores que
geladeiras, roupas ou cigarros. Um produto vende-se para quem pode comprar, um
anúncio distribui-se indistintamente.
Crianças, jovens e adultos, definidos pela indústria
da publicidade em categorias conforme o sexo, a idade e a classe social, são
bombardeados com mensagens, induzidos a satisfazer suas frustrações e anseios
pessoais por meio do consumo. Neste sentido Bauman (2008, p. 154) escreve:
A busca por
prazeres individuais articulada pelas mercadorias oferecidas hoje em dia, uma
busca guiada e a todo tempo redirecionada e reorientada por campanhas
publicitárias sucessivas, fornece o único substituto aceitável – na verdade,
bastante necessitado e bem-vindo – para a edificante solidariedade dos colegas
de trabalho e para o ardente calor humano de cuidar e ser cuidado pelos mais
próximos e queridos, tanto no lar como na vizinhança.
Os instrumentos utilizados para alcançar o consumidor
são os mais variados, dentre os quais jornais, televisão, rádio, folhetos,
cartazes, outdoors, etc. A linguagem
publicitária é a linguagem da sedução, da persuasão e do comando, onde se
mostram produtos e serviços capazes de transformar o desejo em ação. Do ponto
de vista do empresário, essa ferramenta é tão poderosa quanto imprescindível.
Por meio da mídia são criados ou estimulados modos de agir, pensar, sentir e se
comportar, sempre associados a produtos ou serviços disponíveis no mercado. As
estratégias de publicidade e propaganda são, a um só tempo, nascentes e
mantenedoras da cultura de consumo e, por vezes infiltram-se no inconsciente
humano de forma despercebida, podendo emergir a qualquer momento em que se
acione o gatilho do desejo. Neste aspecto, pondera Eugênio Bucci e M. R. Kehl
(2004, p. 61):
Junto com
carros, cervejas e cartões de crédito acessíveis a uma parcela da sociedade, a
publicidade vende sonhos, ideais, atitudes e valores para a sociedade inteira.
Mesmo quem não consome nenhum dos objetos alardeados pela publicidade como se
fossem a chave da felicidade, consome a imagem deles. Consome o desejo de
possuí-los. Consome a identificação com o “bem”, com o ideal de vida que eles
supostamente representam.
É também reconhecido que a livre escolha do indivíduo,
pela compra, sofre influências da mensagem publicitária constante e variada,
conforme Luciano Benetti Timm (2006).
Não parece haver
dúvida de que se vive na sociedade do marketing e do consumo de massas,
(dinamizado especialmente atreves do crédito) sérias são as pesquisas que
defendem não poder o ato de consumo ser considerado como puramente racional. De
fato, pessoas são hoje em dia estimuladas ou até compelidas, pela massiva publicidade
nos "espaços públicos" ou meios de comunicação de massa, a adquirir
bens e serviços. A técnica normalmente funciona relacionando o consumo desta
mercadoria ou marca a um prazer ou modo de ascensão social.
Diante de tais ponderações infere-se que as técnicas
de marketing conduzem muitas vezes ao exagero publicitário como meio persuasivo
para efetivação da venda e representam papel importante na geração do
superendividamento.
5 Alcance social e efeitos do
superendividamento
Como visto, não raro o consumidor é levado à compra
por impulsos conscientes e inconscientes e razões alheias à utilidade do
produto, considerada esta como a resposta funcional que um bem ou serviço dá à
necessidade específica de alguém. Com efeito, a necessidade deveria ser a única
justificativa para aquisição de um produto, entretanto, o desejo é a base do
nosso atual sistema de consumo.
Estudos revelam que recursos persuasivos são
utilizados pela publicidade para incutir a ideia geral de que o ato de comprar
simboliza um atributo, um adjetivo que qualifica o indivíduo, convertendo-se
num passaporte para a inclusão ou exclusão na vida comunitária, conforme ele
pratica ou não os hábitos de consumo. O alcance das estratégias de venda é
virtualmente infinito e, como observado, capaz de retirar da funcionalidade do
produto sua principal vantagem para cravá-la no próprio ato da compra,
propiciando prazer, status e sensação
de pertinência ao adquirente, que, sob os efeitos da conformidade, passa a
repetir obediente a comandos ditados pelo consumo.
Sobre esse aspecto
nota-se que a capacidade de comprar é vista como elemento de inclusão social
por meio do qual, além do acesso a inúmeros bens e serviços, o indivíduo
alcança prestígio e reconhecimento. Na contramão do seu fluxo está aquele que,
por algum impedimento, deixa de consumir ou desacelera o ritmo da compra. Este
sujeita-se à segregação, sendo afastado progressivamente do convívio em
sociedade, marginalizado. O superendividamento é um desses impedimentos, convertendo-se
num entrave ao consumo. Sob sua sombra o endividado, além de perder o acesso ao
crédito – pois seu nome passa a fazer parte do cadastro de inadimplentes dos
órgãos de proteção ao crédito, bloqueando a contratação de novos financiamentos
–, exaure sua renda e suas economias são insuficientes para quitar as dívidas.
Nesta turbulência, as
instituições financeiras, antes solícitas ao contratante, passam a tratá-lo
como pária, sujeito a muitas restrições que inviabilizam qualquer chance de
renegociação administrativa da sua dívida ou, quando muito, permitindo a
renovação de seus contratos de maneira extremamente desvantajosa para ele.
Destarte, frustrada a renegociação da dívida, ou ainda, se firmados novos
compromissos para adimplir os anteriores, ainda assim o consumidor não consegue
pagar suas contas, invariavelmente seus credores buscam o Poder Judiciário para
ver seu crédito reconhecido, e o pagamento por meio da penhora do patrimônio do
endividado, decretando-lhe a morte financeira. A ruína individual se estende
para além da pessoa do devedor, alcançando seus dependentes e engendrando a
desagregação familiar.
O superendividamento é,
assim, um grave problema social que afeta o consumidor de maneira extensa, em
alguns casos impedindo sua reinserção no mercado de trabalho, comprometendo a
manutenção da sua família. Revela-se por vezes tão avassalador que impõe
tratamento interdisciplinar. Neste aspecto, refletem Cláudia Maria Marques,
Clarissa C. Lima e Karen Bortoncello (2010):
Sob
uma ou outra forma, o superendividamento é gerador de situações nefastas que
não se pode deixar prosperar. Constitui, com efeito, fonte de tensões no seio
da célula familiar que muitas vezes acarretam um divórcio, agravando a situação
de endividamento. Ele pode conduzir as pessoas superendividadas a evitar
despesas de tratamentos, mesmo essenciais, ou ainda a negligenciar a educação
dos filhos. E, na medida em que a situação é tal, que a moradia não pode ser
assegurada, é dado um passo na direção da exclusão social. O superendividamento
é fonte de isolamento, de marginalização; ele contribui para o aniquilamento
social do indivíduo. Quanto mais este fenômeno aumenta, mais seu custo social
se eleva e mais a necessidade de combatê-lo se impõe.
Sob um ponto de vista
panorâmico, os reflexos sociais do superendividamento podem ser observados em
toda a comunidade. Isto porque, excluso da capacidade de consumir, o devedor
deixa de contribuir para a geração de renda, afetando o mercado de consumo; as
desordens pessoais podem atingir sua saúde física e mental, impondo-lhe
tratamento médico específico, o que traz gastos para os hospitais públicos;
adicione-se a isto o fato de que a reinserção social muitas vezes só é
conseguida por meio de intervenção judicial, movendo a máquina judiciária para
tratamento do problema. O superendividamento é, pois, um problema de ordem
social com repercussões econômicas e jurídicas e seu tratamento legal no
Brasil, embora urgente, se encontra em fase de discussões preliminares.
Considerações
finais
O
superendividamento é desencadeado por inúmeras razões de ordem pessoal e
social. Fatores como ignorância financeira, carências, impulsividade,
desemprego, divórcio, e outros, estão entre as suas principais causas.
Políticas públicas que promovem o crescimento econômico à revelia do
desenvolvimento social e ambiental do país, e fomentam estratégias de consumo
voltadas para o incentivo à compra, sem executar campanhas educativas que
revelem as consequências dos maus hábitos no comércio, contribuem significativamente
para o surgimento do endividamento entre as famílias.
No Brasil, a
cultura do consumo está consolidada. O condicionamento gerado por campanhas
publicitárias arrojadas, a disponibilidade de crédito fácil e a oferta de
produtos cada vez menos duráveis, aliados à uma ideologia de consumo propagada
por todos os meios de comunicação, nas alegorias televisivas, nas músicas,
enfim, na cultura de massa, reduzem ou anulam a capacidade do consumidor em
decidir livremente sobre a compra. Os critérios elencados pela Teoria do
Consumidor como responsáveis pela decisão de compra foram apreendidos e
facilmente manipulados pelos fornecedores. Com efeito, as restrições
orçamentárias são dribladas pelos financiamentos, a utilidade do produto é
reduzida à condição de descartável e a preferência é escandalosamente ditada
pelas estratégias de marketing. Assim, o consumidor é compelido a comprar e
consumir cada vez mais.
O superendividamento surge da convergência de
todos esses fatores, sendo, portanto, um problema de ordem social que deve ser
tratado pelo poder público com normas específicas, preventivas ou resolutivas,
que regulamentem ações que promovam a reinserção do endividado à saúde
financeira. Para tanto, a parceria entre entidades públicas e privadas é fundamental,
considerando que os problemas desencadeados pelo inadimplemento extrapolam o
âmbito individual ou familiar do superendividado, atingindo economicamente sua
comunidade e, numa perspectiva ampla, a própria economia do país, quando sua
exclusão do mercado de consumo o impede de buscar financiamentos, por exemplo,
num país onde, as operações de crédito respondem por grande parcela do PIB.
Socialmente as
perdas são enormes, podendo levar o indivíduo ao banimento velado do seu nicho
social, uma vez que deixa de conviver entre os seus, impossibilitado pela falta
de dinheiro para participar de eventos sociais, hoje totalmente voltados para
atividades pagas. Perdas econômicas e sociais culminam em desmoronamento
emocional, levando o indivíduo ao colapso. Assim, o tratamento deverá prever
abordagem multidisciplinar, englobando não apenas a saúde financeira do
indivíduo, mas emocional, para que lhe seja viabilizado o retorno ao convívio
social e ao status quo ante, sem
perdas irreversíveis.
Desarrollo y la
demanda en la economía de mercado: sus consecuencias en el sobreendeudamiento
de los consumidores
Resumen: El endeudamiento
es un fenómeno mundial cujas
repercusiones son legales, sociales y económicos. Para una mejor comprensión
y elección de tratamiento apropiado, sin
embargo, es necesario reconocer su
génesis y propagación a la luz de
los factores locales. Este artículo destacará estos
factores, examinados desde la perspectiva de la microeconomía,
en la teoría de la demanda, que se centran en el análisis de los acontecimientos que
resultan de las conclusiones de
las investigaciones cerradas en
la teoría del consumidor. Para tanto se buscará una
breve aproximación histórica, señalando las causas fundamentales genéricas de consumo, el concepto de desarrollo y el aumento del
consumismo. Los sesgos que se
abordarán más estrechamente
se relacionan con aquellos más intrínsecamente relativos a la decisión
de la compra por parte del consumidor; a las
contradicciones auto influenciables, forjadas en el mercado de los proveedores y su papel en la evolución del endeudamiento.
Palabras-clave: Desarrollo. Los Factores
Microeconómicos. Endeudamiento. Consumo.
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ResponderExcluirBom-dia, tem necessidade de um financiamento. Obrigado à Sr. Victor recebi um empréstimo de 70.000€ e muitos meus amigos receberam o seu financiamento. Oferece empréstimos entre privado de 2500€ à 2.500.000€ à uma taxa razão de 2%. seu correio eletrónico: victorboulo@gmail.com